Tiê @ Auditório do Ibirapuera, São Paulo-SP 08/04/2011
Fotos: Amanda França
A entrada do Auditório Ibirapuera cria um contraste com a paisagem escura da noite dessa sexta-feira. Uma explosão em vermelho hemoglobina que coagula a vontade de calmaria. Mas o tempo para a cantora Tiê é de mudança… Já vão longe os dias onde seu brechó foi morada de encontros que abriram pontes, criando vida dentro de sua alma. Um tempo em sépia onde Dudu Tsuda e Toquinho foram os primeiros à perceberem que a voz da cantora poderia ser muito mais do que simples tremular faríngeo, e sim alquimia de claves em direção ao que se viu na apresentação da estreia do novo disco, A Coruja e o Coração, pautado por uma mudança importante dentro da sonoridade em valsa leve do primeiro álbum (Sweet Jardim, 2009).
O nascer de uma vida que corre por entre o calmo álveo do sentir, também amalgama uma quantidade de magia que se reflete nas notas do show. Enquanto meu andar tropegamente dirigia-se à entrada, era possível sentir todos os poros inundados com o refletir da luz que emanava do teatro. Reflexos evidentes em um vestido cristalino e saltos em neve. As escápulas desnudas e as pernas que procuravam seu lugar dentro do palco, apenas eram nuances do ritual de purificação que a plateia passaria dentro daquela hora e meia.
Purificação que inicia-se com a canção “Na Varanda da Liz”. A banda formada por Plinio Profeta (guitarra), Gianni Dias (baixo), Naná Rizinni (bateria), André Henrique (violão), Karina Zeviani (backing vocal), Ana Eliza Colomar e Luciana Rosa (cellos), torna-se minimalista no gestual, mas de uma vulcânica alquimia dentro dos acordes. São pequenos detalhes, como por exemplo uma nota dissonante ou um gesto na direção do inusitado. Tudo isso já deixaria o público atento, mas o ritual apenas começara.
Uma beleza simples que ecoava na canção seguinte (“Eu Só Sei Dançar Com Você” / Tulipa Ruiz). Tiê se movimenta ao redor das cordas de seu violão com suavidade de bailarina mambembe, direcionando suas mãos por entre o braço de madeira. Um momento onde o instrumento começa a fundir-se com seu corpo e alma. Hipnose em forma de silêncio, em uma plateia tomada pelo feitiço do tempo que sempre retorna ao mesmo ponto. A beleza da versão cantada.
Aplausos e uma das primeiras conversas da cantora com o público. Ela cria o vínculo e passeia por ele com maestria de quem conduz um ninar. Uma mãe que embala centenas de crias sedentas por carinho e afeto. Tiveram os dois em quantidades de Maria, a mesma que um dia Tiê já quisera ser. Tulipa Ruiz extravasa o feliz auscultar de sua letra com um oi. Ligação iônica de duas comparsas do encantar.
O show tem seu início marcado pela velocidade mais leve. Não havia espaço para flashes desavisados, pois as referências dentro das canções extravasam a simples e mera utilização dos baluartes da chamada MPB. Tudo é muito mais complexo que apenas citações, pois estamos diante de uma cantora que não deve nada à nenhum grande nome que mora no além mar. A utilização do piano dá ares ‘spektorianos’ às canções. Referências que transitam entre o jazz, folk e castanholas formadas por mãos. O repertório traduziu o novo álbum e as canções “Piscar o Olho”, “Perto e Distante”, “Pra Alegrar Meu Dia” formaram uma trinca que possui a genética do caminhar em direção ao sossego. Nesse instante minha hiperatividade torna-se obsoleta, tenho apenas tempo de olhar ao longe esse farol que guia as almas na direção do calmo mar.
Tiê então chama a backing vocal Karina para o seu lado, juntas cantam “Já é Tarde”. Composição da dupla feita por meios binários, mas de poesia em preto e branco. Essa música acaba tendo um efeito preparatório para o que se viu em “Mapa Mundi”, onde o cantor Thiago Pethit acompanha a cantora em uma dança de vocalizações e poesia ímpares. Um dos grandes momentos do show, juntamente com a interpretação de “Passarinho”. A letra em forma lírica escorre por entre os olhos de Tiê e inunda a platéia, que sucumbe por entre a contração dos olhos lacrimados. Não há espaço para objeções, pois nesse momento a vida pediu passagem.
A cantora conversa, brinca com Plínio e é de uma doçura que por vezes percorre a linha tênue entre o ensaiado e o real. Mas a força dessa simpatia é tamanha, que fica difícil não acreditar em todos os momentos onde ela se atrapalha e não faz questão de disfarçar. Impossível não sucumbir ao apelo de beleza e força que pairam sobre os origamis tetraédricos do palco. Aviões que anemofilizam o público com a genética do disco. Uma fusão entre a força do movimento mais rápido das notas e a delicadeza do acordes hipnóticos.
Por vezes trovadora dylaniana. Por outras poetisa coralina de cadências que rotacionam suas pernas, Tiê prova que é possível construir um espetáculo baseado em novas saídas. Uma revitalização do tão batido chão das cantoras nacionais, que por muitas vezes pareceu uma fábrica em série de clones. Ela é um dos vórtices desses novos paulistas antixenofobia musical, uma ordem que é tão lúdica quanto octaedracubana. “Assinado Eu” e a repetição de “Na Varanda da Liz”, colocam o público em pé.
Ao final do show, quase como uma quebra de protocolo, a cantora agradece à todos. Mesmo correndo o risco de soar política demais, Tiê mostra que a educação pode ser uma arma de democracia libertária. Mas mais do que provar que é possível co-existir em harmonia, o novo show tem uma qualidade muito maior do que socratiana filosofia política:
A neta de Vida, é capaz de conduzir uma cidade caótica em direção à beleza de alma e paz do espírito. Quiçá um dia, a magia conduzida pela domadora de origamis, possa transformar cada pedaço do corpo de todos nós, seres violentos por natureza, em algo maior. Algo que apenas o amor de uma mãe pode conseguir.
Imperdível show para quem tem alma ou deseja conseguir uma….