Texto: Fabio Navarro
Fotos: Virginia Serra
O trânsito de São Paulo pode causar fusões de fúria incontida em monges beneditinos, se não for entendido e manipulado como uma força independente da natureza matrixniana. Nessa última quinta feira (05/08), particularmente ele parecia envolto em ódio tectônico, tamanha a quantidade de carros que aglomeravam-se e pulsavam na veia aberta que era a Avenida Europa, localização do Museu de Imagem e Som (MIS) durante o início da noite. Os milhares de passantes motorizados que acotovelavam pneus no asfalto, em sua maioria desatentos para a aura beatificada que rondava aquele quarteirão, mas quando se estacionava o carro em frente ao museu já podia-se sentir uma pureza de ar.
Talvez esse fosse realmente o objetivo final do evento realizado nessa quinta feira. O ABSOLUT CREATIONS (patrocinada por uma famosa marca de vodka) e seu festival Rojo Nova, há uma semana atrás mostrou aos paulistanos o trabalho caótico do diretor Spike Jonze (com o curta “I’m Here”). Dessa vez a noite teria colorações e imagens lisergicamente pacificadoras de alma…
Já na entrada do MIS, suas pilastras brancas colocadas lado a lado e formando um corredor, deixam a impressão no ar que estamos entrando em outro mundo. Milimetricamente dispostas como se fossem flores de concreto que recebem os iluminados. E não é pretensão hypesteriana dizer que as pesssoas presentes ao show da cantora SÓLEY e o grupo SIG FANG BOUS (projeto solo do criador da sensacional banda islandesa SEABEAR, Sidri Mar Sigfusson) foram merecedoras do adjetivo apenas dado à Daniel Torrance. Mesmo porque existia um clima sacro no ar interno do museu, talvez devido à presença de um certo reverendo…..
Apesar dos preços acessíveis (R$ 80,00 a inteira e R$ 40,00 a meia entrada), o número de pessoas era reduzido dentro do espaço. Obviamente que shows com o início marcado para as dezenove e trinta da noite em uma quinta feira, não são os mais procurados pelas audiências. E mesmo as atrações sendo expoentes de uma safra brilhante da sempre surpreendente Islândia, o clima era intimista e quase bucólico.
Poucas pessoas tomavam bebidas destiladas em canudinhos que aspiravam diferentes cores rodeadas de cubos de gelo transpirando um caleidoscópio de movimentos dentro dos copos. Para cada boca, uma cor específica e início de uma experiência sensorial que apenas terminaria com o último acorde.
O show realizado dentro do pequeno auditório, revela logo na entrada sua condição de experiência ludovicana. Assentos simetricamente dispostos e rodeados por degraus que permitiam armadilhas ao caminhar, esperavam sorridentes o descanso dos corpos da platéia que já colocava-se em seus lugares.
Tudo com tanta calma e silêncio, que nem ao menos parecia que em minutos entraríamos no mundo de dois músicos que tem em sua gênese musical o mesmo núcleo (Sóley e Sidri são comparsas no Seabear) e que são idolatrados pelos fãs da banda, devido à mistura lisérgica de acordes com tonalidades variantes entre a experimentação e o palatável (e por que não dizer pop, afinal de contas essa palavra quando bem realizada pode gerar maravilhas).
Mas quando separados, esses dois super gêmeos da liga islandesa da justiça (que ainda conta com a participação de Björk e Sigur Rós) revelam uma faceta muito mais complexa e de talento ímpar dentro do mundo dos sons. São sonetos decassílabos reverberados dentro de uma difusão sensorial que não contém apenas um sentido exposto como osso solto. Tanto no show de Sóley, quanto a banda Sig Fang Bous a experiência sensorial é completa.
E tudo inicia-se com quase uma hora de atraso, por meio de um olho postado no telão ao fundo. Como uma instalação de Andy Warhol, onde não existem diálogos e apenas uma imagem que lentamente realiza movimentos pleonásticos, o verde íris que recobre uma retina vedada por uma lente de contato, intimida. Esfinge que encara a platéia como se indagasse à todos se estão ou não preparados. Ao mesmo tempo que desafia, esse olho é um aviso para que não apenas os ouvidos fossem utilizados. Na presença de poucas luzes dentro do palco, seus olhos necessitavam permanecer atentos.
Sóley entra vagarosamente no palco, como uma menina em seu primeiro dia no colégio, apenas munida de seus óculos cartunescos. Para, olha ao redor e dá boa noite em inglês. Inicia então uma série de frases em sua língua nativa que parece ter sido retirada de algum filme de ficção científica. Mas se existe uma característica no dialeto islandês, essa é a métrica poética que as sílabas apresentam. Todas as frases que são ditas parecem claves de sol. Isso explica a beleza nas composições que mesmo cantadas em inglês, possuem o sotaque de nascimento. Ela apresenta-se e inicia o show, ao fundo uma projeção que revela um caminho.
As luzes vão diminuindo até o momento em que apenas pode-se ver a paisagem bucólica sendo percorrida pela câmera. Por instantes a figura anatômica da cantora desaparece e ressoam pelo ar os tímbres vocais que de imediato lembram Björk, tanto que em várias notas mais altas a semelhança é palpável. Mas Sóley como mostrado na projeção percorre outro caminho. E com um passe de mágica da menina maga que por muitas vezes parece perdida dentro do espaço do palco, estamos imersos dentro do som.
Na verdade nesse instante nossos corpos estão em outro lugar dentro da projeção, rodeados de sons mágicos que misturam bases pré gravadas podendo ser às vezes apenas palmas marcando a melodia. Ela usa as nuances eletrônicas com canções que percorrem os caminhos do clássico a mais doce melodia infanto juvenil (como no caso da canção “”Rabbit””). Mas não são apenas as notas lindamente tocadas que emocionam a platéia, Sóley encanta quando timidamente conta histórias sobre a estadia em São Paulo ou a composição de uma canção inédita (vídeo abaixo).
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A experiência é completa, ouvidos, olhos, sorrisos e almas são levados em estado de pura eletrônica lisergia hipnótica, que por muitas vezes conseguem marejar os mais experientes olhos. Mesmo sendo um show curto, transportou a todos para um outro lugar muito distante do espaço pequeno do teatro. Levados em nuvens de ébano e marfim por caminhos cheios de sorrisos tímidos e óculos cartunescos irressistíveis.
Mas não bastava chegar ao sublime, era necessário manter-se. Entra em cena então Sidri Mar Sigfusson. Ele e a menina que à pouco havia levado as almas na platéia para um passeio juntam-se e mostram o porque da banda Seabear ser catapultada como uma das mais talentosas dentro do cenário, inclusive com canções colocadas como trilha sonora de seriados famosos.
“Cold Summer” torna-se inesquecível dentro da metade do show. Não havia uma intensidade messiânica dentro da apresentação, muito menos a necessidade de destilar hits. Apenas simples notas que fundiam um pouco cada pedaço de corpo e ventrículos por entre os entrecantos de cada acorde. Tudo isso desencadeando um dos momentos mais bonitos da noite que você acompanha agora….
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Após a pausa de quinze minutos, entra em cena a SIG FANG BOUS. O quarteto complementado por Sóley no piano mostra que é possível a mistura de referências diversas dentro de canções, o que para qualquer ouvido desatento soaria como um pop rock acima da média. Engana-se quem tentar decifrar o som da banda por esse caminho, afinal de contas existem referências nítidas ao som de Fleetwood Mac (o SFB já regravou “”Landslide”” da banda americana), Neil Young e Radiohead. Mas também não adianta relacionar o som da banda islandesa com as suas referências diretas. Mesmo o guitarrista da banda lembrando-me muito Johnny Greenwod e a busca incessante pelo efeito de pedal perfeito.
As canções da banda transitam em uma faixa que percorre o mais puro e cerebral pop universal e isso não é pejorativo ou diminutivo do som. Durante todo o ano de 2009 vimos uma banda como o Phoenix tornar-se venerada pela mistura de canções que eram poderosamente sonoras dento do gênero inaugurado pelos Strokes em 2000. O rock dito alternativo levado para o lado do mais acessível e riffeiramente grudento. Canções com o apelo do gênero, mas com uma alta concentração de sinapses inteligentes, mas com o SFB o jogo atinge um outro patamar….
Não existem saídas pleonásmicas para as canções, um refrão que começa inicialmente comum não terminará encontrando a próxima estrofe, mas sim uma conjunção assimétrica de novas notas que possuem um poder de confundir os ouvidos tão grande quanto o de hipnotizar. Diferente de músicas que à duras penas tentam parecer inteligentes despejando uma britadeira de lisergia envolta em guitarras e distorções. As canções do projeto solo de Sidri possuem vida própria as vezes, pois tem-se a impressão em vários momentos que a banda deixa-se levar por onde a ordem dada pelos acordes à leva. Sem amarras ou cartas marcadas.
Outra diferença é a intensidade matemática que a banda de apoio possui. Muitas vezes parecem em transe e tocando mantras xamânicos, que sempre encaixam-se na melodia do violão de Sidri. Outras vezes destoam da linha reta e fazem voltas sinuosas cheias de distorções e tempos cortados de bateria e baixo. Isso tudo apenas reforça a idéia de que a beleza das canções está no momento da descontrução das mesmas, em um local onde a platéia é capaz de sentir cada pedaço de seu corpo ser absorvido pelas melodias.
O show dessa quinta afirmou certezas e fez novos admiradores. Não foi necessário um palco de 360º, parafernálias eletrônicas, coreografias ensaiadas antes com a platéia. Sons profundamente belos como agulhas quentes que marcam uma pele deixando marcas de vida para sempre e algumas imagens foram necessárias para que a experiência fosse completa. Arrebatados pelos ouvidos, levados pelos olhos e salvos pela fusão de alma com a beleza das notas, todos nós saímos do MIS nessa quinta um pouco mais humanos. E por que não usar a palavra felizes…..
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Isso não foi um show… foi uma experiencia…
Otimo texto e o show foi muito bom !!!
realmente foi uma experiencia !!!
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