Monique Maion @ Lions, São Paulo-SP 26/04/2011
Fotos: Amanda França
O vento que cercava a esquina da Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, refletia-se por entre as arestas da Catedral da Sé logo à frente. Uma sensação de movimento deslocava o atrito dos pneus em uma grande caminhonete, que derrapava na curva da noite de ontem em São Paulo. Essa aura de boemia sórdida e santos de comerciais televisivos, aflorava por cada sinapse noturna. Por mais que a calmaria entre os copos de vidro cheios álcool insistiam em colocar, a anunciação da novidade ainda era a tônica. Tão familiar quanto assustadora.
Modelos e zumbis em um lugar onde a clemência vagarosamente repousava uma cerveja faringe abaixo. Com malabares nova orleanos, como se a liberdade pudesse ser aferida pelos acordes vocais e movimentos de quadris cambaleantes. Esse clima de cabaret em aquário moderno era tão agudo quanto latente no Lions Club, poucos minutos antes da apresentação da cantora Monique Maion. O show marcou o lançamento do primeiro EP The Stolen Records. Independente, como uma valquíria metalizada em espartilho de lava, a cantora resolveu disponibilizar os discos logo na entrada da casa. O embuste com sua antiga empresa fonográfica, deixou a marca do inconformismo latente em sua genética, pois a nota de rodapé já indica:
“Esse EP é independente, você pode copiá-lo e divulgá-lo da forma que quiser“.
Assistir à shows em casas noturnas na cidade é uma das mais ilusórias formas de se perceber os seres humanos. A casa abriga uma platéia considerada pelos circuitos geo-sociais, de classe A. Obviamente uma posição onde a educação seria algo aprendido na escola e no berço. Mero engano, afinal de contas, uma parte do público paulistano carece de noções básicas de educação. Por favor e com licença são palavras tão perdidas quanto os tesouros de Indiana Jones Junior. Silêncio na hora do show então é artigo de luxo. O som da casa muitas vezes era abafado pelas vozes de ratos do laboratório hype, que existe nas esquinas da vida noturna da cidade. Uma pena novamente, pois Monique é uma cantora que definitivamente está no patamar das melhores revelações do gênero. Um sopro de ar envolto em rebeldia preta e branca de ribalta. Algo novo, gênese de criação pura e simples.
A casa em tons escurecidos e luzes brandas deixava o clima mais intimista. Funk e soul em vitrolas digitais percorriam a aura ambiental. Aos poucos pierrôs e colombinas começam a chegar cambaleando quadris soltos próximo ao palco. Sente-se o clima burlesco aconchegando almas, sabe-se então que a hora chegara, no momento em que o roupão brilhante de Monique desliza por entre as pessoas.
A cantora em produção asteriana, tem em seus olhos espelhos. O microfone vintage e suas meias produzem uma ligeira expectativa pelo novo. Começava então uma experiência atemporal.
Existe um deslocamento de tempo por entre os acordes em sépia germinados pela banda. A reprodução do EP gravado em Londres, revela uma máquina volátil de acordes minimalistas em uma guitarra nascida em tempos de ragtime. O contra baixo acompanha a cadência em marcha de santos. Estilizados em morte ou cartola, a banda tem o ritmo encravado por entre as vozes e os dedos. Entrelaçam perfeitamente o tom da cantora e seu set list. E ainda havia uma ballerina betty boopiana, mas isso é para depois.
Os ecos de cantoras como Ella Fitzgerald são abafados pelos vivos, mesmo assim Monique Maion torna-se eterna por três minutos. Perfeita introdução para o primeiro single do EP (“I Killed A Man”). Nesse minuto a oração para que o santo da televisão trouxesse alívio calcâneo já não era mais necessária. O bálsamo opiáceo nas canções (que não precisam de crença), era nítido. A voz da cantora é forte como trovoada e a alma escorre por cada gota dos espelhos oculares. Loucura travestida em acordes onde cabarés medievais parecem brotar por entre a modernidade dos presentes. Canção atrás de canção, a banda e Monique crescem e tudo torna-se espetáculo.
A coesão é tamanha que a falta da língua mãe nas letras não faz diferença. Estamos presenciando o nascer de uma espécie diferente de cantora nacional. Não existe a brasilidade aguda (mesmo possuindo ecos), mas sim uma alquimia de sons do mais puro jazz barackolândico e o requebrar ímpar do carnaval. Uma catarse em claves que apronfundam em pântanos repletos de bourbon, mas com uma malemolência dendeniana. Monique se entrega, o roupão já não lhe cobre o corpo esquio. Seus quadris, suas pernas movem-se como arcos voltáicos de força eletromagnética em furor hamletiano. As canções variam entre o pulsar e a beleza em preto e branco de tempos onde divas vagavam sobre a terra. O erotismo pueril e a força dos acordes dançantes, colocam os que deixam-se levar pelo cenográfico hipnotismo, em transe constante. Aos poucos, os gritos e aplausos. Aos hipsters falantes, as batatas.
O show prossegue em ritmo de megafone. Um grito abafado por entre os acordes que se revezam entre a calmaria voraz da voz de Monique e os pequenos duelos entre os backing vocals. Aliás há de se fazer uma nota aos dois backing vocals da banda. Exatos com metrônomo e capazes de vocalizar claves belas, a dupla faz de “Mr. Sandman” uma viagem no tempo, onde o relógio da catedral atingida por um raio em De Volta Para o Futuro, materializa-se em sua frente. A cantora faz a retaguarda perfeita nessa versão que permeia a parte final do show. Uma rara forma de música na noite paulistana, onde não foi preciso de um DeLorean para se posicionar na linha de Einstein.
O show de Monique Maion é algo diferente. Uma hecatômbe vocal que desfalece os sentidos e apaixona a libido neurológica dos que buscam talento. Uma rara combinação de burlescanias e mesmo aproximando-se perigosamente de uma linha pleonásmica ao final, os talentos reunidos da banda e cantora garantem uma experiência mais do que agradável. Uma pena que foi necessário o strip tease de cabaret da dançarina, para que a alta sociedade participasse do show. Talvez em um outro local, a festa da independência teria ocorrido por mais caminhos completos.
Outro traço bem desenhado é a teatralidade. A cantora agradece, conversa e divaga sobre pileques no melhor estilo Billie Holliday de ser. Rende-se de vez ao estado de hipnose proporcionado pela banda mantra que a acompanha. Não há espaço entre os acordes que ofereça o desprazer da dúvida. A cada nova canção uma surpresa vocal diferente, um novo acorde de maneira independente. Uma fusão de show, suor descendente e alma que transborda pelos acordes. A entrega é completa, e isso é sempre o que importa dentro do palco.
A névoa que envolve o leito do rio na volta para a casa, marca a certeza de ter assistido o nascer sólido de uma cantora, que veio para fazer com que a cena da cidade torne-se menos previsível e mais octaedracubana. Pensar que existe a possibilidade de um show onde nada se resume ao banquinho e violão, é tão salutar à alma quanto uma revolução social comunista. Por isso a presença da cantora é tão necessária ao nosso mundo sonoro.
A capacidade de traduzir sons, pinturas, máscaras e teatro, dentro de um minúsculo e confuso palco, é uma das melhores características que se pode esperar de um artista.
Monique Maion a possui, mas não somente essa.