Eu sou bem ‘sudestão’, sabe? Cheio de esteriótipos por nordestinos, quiçá preconceituoso. Espero sempre algo menor, com menos impacto e de expressão mais contida, mas aprendi que surpresas são momentos que necessitamos até mesmo como aprendizado, seja por motivos estruturais ou por emoção.
Quando eu vi aquela mãe com um chocalho numa mão e uma filha que parecia ter poucos meses de nascimento chacoalhando o instrumento em perfeita sincronia com o sorriso da criança e o ritmo forte da guitarra de Rafael Castro entendi a paixão que move tudo na cultura pernambucana e que norteou as duas noites principais do festival Coquetel Molotov 2013.
É um evento que tem direta ligação sentimental com o estado e faz questão de misturar sons distintos no mesmo palco com artistas locais. O povo não vaia, não reprova. Sabe que este pode não ser o artista que esperou para ver na fila quilométrica que chegou a dar duas voltas do pátio principal do Centro de Convenções da UFPE, mas abre seu coração para ouvir as música e talvez até gostar. Bixiga 70 foi um bom exemplo da conquista do público. As músicas instrumentais, longas, repletas de solos e complexas por natureza pareceram casar com a cidade, talvez até por conta da mistura sonora que Pernambuco carrega bastante do afro que norteia a musicalidade dos paulistas, fazendo-os, fácil, uma das melhores apresentações do evento.
Alguns pontos desse amor beira a devoção suprema. A valorização de certos artistas gera uma surpresa maior que a própria organização poderia esperar. Como na cena utópica da invasão de fãs do Cícero na área reservada, fazendo com que uma pequena multidão se arrastasse em choros e histerismo gigante para um artista que era apenas o segundo a se apresentar.
Cícero chegou a um novo nível musical. Ainda há insegurança nas palavras, uma falta de certeza nos arranjos, mas agora já é bem mais fácil de ver um cantor mais sincero e o caminho que decidiu fazer para marcar seu nome na lista dos especiais da música brasileira moderna.
A cada palavra, a cada passada do roadie na montagem do palco, a cada sorriso, gritos histéricos rasgavam o belo teatro deixando o músico ainda mais confortável com a missão já ganha de encantar a plateia. O público, alias, estava tão nervoso e radiante por poder ver pela primeira vez Cícero em Pernambuco que mal conseguiu acertar o ritmo das palmas. Com Sábado cantado na íntegra e quase todo Canções de Apartamento executado, o show seguiu como a grande atração de uma noite que basicamente estava em sua segunda banda. Plateia toda de pé, palmas e mais palmas e mais palmas.
A contra ponto do amor, o endeusamento de Rodrigo Amarante aconteceu, mas com uma boa dose de lentidão, pouca resposta e algum abandono do público. Cansados do atraso no palco (Amarante começou há 10 minutos do horário que o show estava previsto para acabar) e um repertório de lentidão exagerada, pouco a pouco o público que o acompanhou em estase foi se sentando, dormindo ou indo embora. Emblemática a cena onde, às 3 e pouca da manhã, Rodrigo encerra com “Tardei”, dá um tímido tchau e se despede. O público se dirige a porta rapidamente, sem insistir no bis já programado e sem reclamar. A casa se acende e os roadies e técnicos de som não sabem se acabou ou não, até Rodrigo aparecer no palco e forçar o apagar das luzes para uma emocionante execução de “Evaporar”, clássico de seu repertório tocado a meia plateia de incansáveis.
Com um repertório cortado, o ápice do show acabou sendo o abraço que recebeu dos fãs numa invasão coletiva. Centenas de jovens, ao mesmo tempo, deram trabalho a segurança e assustaram Rodrigo, causando um aumento na guarnição do evento no dia seguinte e a utilização de grades na frente do palco.
Caído o mito de que seu show é para teatros, onde o sono é facilitado pelo ritmo lento e cadeiras acolchoadas, Amarante passou como coadjuvante de luxo. Rafael Castro fez questão de expor a energia que faltou no show principal e, num trocadilho infame, foi o luxo do lixo. Sujo, irônico e altamente roqueiro, transformou o palco Red Bull Music Academy Stage num inferninho dos mais divertidos. Ao fim, guitarras para o alto, baixo no chão, público boquiaberto e técnicos em desespero. O rock n’ roll em sua essência e beleza.
Juvenil Silva e Hurtmold eram os diferentes. Enquanto Juvenil sintetizava Pernambuco e seus ritmos no palco, o Hurtmold tentava se adaptar ao público de poucos interessados. De fato, Juvenil se saiu como o grande representante do estado, enquanto o Hurtmold ficou enclausurado numa ordem de lineup que não revelava a realidade do público. Os paulistas executaram todas as faixas do disco Mils Crianças e agradaram, sem muita expressão. Enquanto que o entusiasmo de Juvenil refletiu numa apresentação especial e sentimental. Uma boa amostra da cidade para um público além Pernambuco que não conhece a nova música produzida na cidade.
O grande dia do Red Bull Music Academy Stage foi o sábado. Opala, duo carioca formado por Maria Luiza Jobim e Lucas de Paiva, começou tímido e com um repertório limitado, mas arrastou público pouco a pouco, terminando a apresentação aos pedidos de bis e repetição de “Absense to Excess”, não antes de homenagear Vinícius de Moraes, que comemoraria seu centenário na data, mostrando uma versão de “Moinho D’Água”.
A grande surpresa do festival foi o Memória de Peixe. Duo baseado em pedal repetidor e bateria, abusou do Math Rock e contagiou um público que nunca nem tinha ouvido falar seu nome. Primeiro show fora de Portugal, terra da banda, foi carregado de peso nas baquetas e riff sob riff, construindo ao vivo e com poucos recursos uma música cheia e hipnotizante. Instigante formato instrumental conquistando um público que estava ali ou pelo rap ou pela fofura.
Mas a casa veio abaixo com Karol Conká. A curitibana, não só abarrotou o espaço, como chamou o público para cima do palco, esbanjando energia e sem economizar no palavrão. Com a plateia totalmente entregue, coube a moça esbanjar a simpatia e rimar com personalidade dentro de um longo repertório. Arrancando novamente pedidos de bis coroados principalmente pelo ex-BBB Aslan, apresentador oficial do evento.
A devoção maior estava na Clarice Falcão. Foi o ápice. O teatro abarrotado, com a frente do palco tomada por jovens que sabiam cantar cada trecho até das canções mais obscuras da moça. Parecia claramente com uma seita à fofura travestida de ironia. Nem as grades recém instaladas seguram o impeto dos fãs, chegando haver invasão. O horário já avançado deixava os pais preocupados e de olho bem aberto em suas filhas se desmanchando de amores por aquela moça simples, fofa e piadista. Pernambucana de nascença, coube ali uma citação a “Adeus, Pernambuco”, de Luiz Gonzaga, em meio ao grande hit “Monomania”, última música executada pela moça.
Clarice explica bem a produção caprichada e os arranjos complexos num show de versatilidade. O palco gigante e o público não a intimidaram, fazendo-a se sentir tranquila com a devoção imposta a sua imagem. Os temas adultos parecem preocupar mais os pais do que os fãs que decoram a música e cantaram todas, de ponta a ponta do show.
Família, amor e respeito. Parece lema de uma igreja, mas é o sentimento maior dentro do No Ar Coquetel Molotov: um festival de misturas de público e de fãs selvagens e receptivos.
Sexta-feira foi, como Cícero diz "é sexta-feira amor" foi uma sexta-feira de amor, repleta de amor. Foi tudo perfeito, Cícero e Amarante são super talentosos, super carismáticos, amei. Cícero nos recebeu super bem, com uma simplicidade que não se vê nos artistas hoje em dia. Parabéns ao festival!!!
Que medo desse festival!!!